Quando assumi a vice direção de uma escola, senti a responsabilidade, inerente ao cargo ,pairando em meus ombros. Procurei realizar uma gestão voltada para os objetivos pedagógicos e direcionados ao bem estar da coletividade. Eram 1500 alunos matriculados e divididos em três turnos. O turno da tarde exigia mais atenção por se tratar de jovens de quinta a oitava série do ensino fundamental, no total de 600 alunos .O horário do recreio merecia cuidados especiais por ser o de maior turbulência. Tínhamos uma auxiliar de disciplina e, mesmo assim, era difícil controlar o horário das aulas, corredores, banheiros, biblioteca, salas de aula, refeitório e todos os corredores distribuídos pelos dois andares.
Certa ocasião estávamos reunidos na sala dos professores e percebi que o assunto girava em torno da suspeita de que , no intervalo, os alunos estavam conversando com elementos estranhos, no portão da escola, pelo lado de dentro da grade fechada. Investigamos a procedência desse grupo e descobrimos serem de uma gangue que descia do morro para oferecer droga aos estudantes. Fazia parte do plano,em tese, chegar de mansinho nos elementos da bagunça, assim como eles mesmos, que se utilizavam da mesma tática, para conquistar os alunos.As professoras desconheciam o modo de lidar com a situação e confabulavam, entre si, sem nada decidir .E nem os dois professores de Educação Física, nem o zelador se achavam preparados para enfrentar essa situação .Ao analisá-la, a única certeza que eu tinha, era de que tínhamos que agir com cautela.
Havia um rapaz mais alto que os demais, magro, de boné, dando ordens e se movimentando com passos rápidos como se não quisesse perder nada do que acontecia ao seu redor. Esse liderava o grupo e seu apelido era ''Branca de Neve'', por ser , justamente o de pele mais escura, destacando-se entre todos os outros mulatos e demais elementos de cor branca. Resolvi agir por conta própria e pensei numa estratégia para solucionar o problema, cara a cara,com o líder e sem subterfurgios. As professoras discordaram de imediato, argumentando que se o ''Branca'' não gostasse de ser interpelado, um surto de impropérios rasgaria o ar ,para fazer eco no pátio do recreio, assustando os alunos. Mas , confiante de que minha idéia poderia dar bons frutos, apostei todas as fichas nela e parti para a ação.
Na tarde seguinte, no intervalo da merenda, dirigi-me ao pátio e avistei a turma, do lado de fora do portão.
Chamei o líder e abri o portão para que entrasse e logo fechei novamente. Preparei um sanduíche, suculento , feito especialmente para a ocasião, seguido de um copo duplo de suco de laranja natural. Ao perceber que ele se alimentava até com os olhos, pedi-lhe, de mansinho, que se afastasse da escola, porque os pais dos alunos, já preocupados, não queriam ver seus filhos falando com estranhos. Apresentei-lhe alguns argumentos, como o fato de estarem promovendo a algazarra, junto ao portão, ao mesmo tempo que atrapalhavam o fluxo normal dos veículos ao permanecerem no meio da rua. Falei sobre o lixo que jogavam na calçada da escola e das brigas que presenciara entre eles mesmos, quando queriam determinar, cada qual, seu território .
Referi o fato de que alguns alunos, sentindo-se ameaçados, se recusavam a comparecer às aulas. E que era de minha competência, fazer o possível para restabelecer a ordem. Mas , não deixei escapar, em momento algum, que suspeitávamos de tráfico de drogas.
E como quem nada quer, como se a referência fosse casual, nas entrelinhas, tratei de mencionar uma delegacia de polícia que estava situada nas imediações da escola,dizendo que, não raro, um guarda à paisana, fazia a entrada e a saída dos alunos. E percebendo já a reação de meu ouvinte completei, rápida:
-''Branca'', se não deu para perceber nada é porque o guarda faz rodízio entre essa e outras duas escolas próximas.
-Diretora,aqui na frente tem brigadiano?
-Sim, sempre que necessário a Brigada Militar permanece nas imediações da escola.
-Se é assim, vou sugerir a minha turma que saia da frente do portão e ficaremos mais adiante, na esquina
-Mas porque na esquina, não seria melhor ficarem bem mais afastado?
-Não , diretora, tenho uma nova missão a cumprir
-E qual seria?
-Dar-lhe a minha proteção,certamente.
-Não se preocupe com isso, ''Branca''
-Engano seu- faço questão- a senhora permanece seu dia na escola e desconhece o perigo das ruas.
-Mas......
-Sim, como disse, vou estar atento e ninguém vai perturbar seu sossego.
E assim dizendo apertou minha mão e agradecendo o lanche que lhe ofereci ainda disse:
-Diretora, estarei na esquina, me chame se precisar.
Desnecessário se torna dizer que não chamei mais o líder da gangue para coisa alguma, pois para meu alívio e o da comunidade, nenhum elemento de vestes extravagantes e corpo tatuado, ninguém mais chegou perto do portão da escola.
Mentalizei, muitas vezes, o gesto carinhoso de ''Branca'', ao me abraçar pelos ombros enquanto dizia ser meu protetor, a qualquer momento, independente da circunstância e da hora.
Penso que em cada esquina, em todos os espaços do planeta, há um irmão para cada um de nós que não precisa ser irmão de sangue para ser considerado como tal.
Esse é o irmão ao qual Deus se referiu quando disse:
-Amai-vos, uns aos outros, como Eu vos amei.
Ou ,em outro trecho da Bíblia:
-Ama o teu semelhante como a ti mesmo.
A existência desse irmão percebemos com os olhos da alma. Adquiri a certeza de que , na vida atribulada de ''Branca de ''Neve', não passei em brancas núvens.
Enquanto viver quero lembrar que teria a meu lado, sempre que quisesse, um protetor insólito, ''sui-gêneris'', pouco convencional , mas cumpridor de sua palavra. Pelo menos, da palavra dada a mim porque lhe tratei com dignidade e consideração, como merece um ser humano. Mesmo parecendo desumano por estar rodeado de circunstâncias adversas e de uma infância desamparada, ali mora um ser humano.
Tenho fé no que falo porque a magia de um sorriso, de um abraço, de uma palavra amiga, de um olhar tranquilo, juntos podem ser como a pedra fundamental, a servir de alicerce para a construção de um novo caminho. Quem sabe um novo ser desperte de seu estado letárgico,com mãos ávidas e nervosas,tentendo nelas prender o primeiro fio de linha do carretel da esperança. e , de um certo modo, de um pequeno fragmento da felicidade.
KATIA
Email:k.treen2@hotmail.com
Aamai ao próximo como a ti mesmo: a grande verdade de Deus,nosso pai.
ResponderExcluirPaz aos homens de boa vontade,disse Cristo
ResponderExcluirKatia, lindo, realmente eu acredito que a fraternidade faz milagres. Belo trabalho, parabéns.
ResponderExcluirSIM,A PALAVRA MODIFICA A CONDUTA E OPERA O MILAGRE DA FÉ.
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