Aquarela de poesias

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Poesias para você

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

D.QUIXOTE DE LANCHA

                 D.QUIXOTE DE LA LANCHA

Nosso personagem é incomum
Antônio teve uma infância desprovida de afeto.
Seus pais atendiam o estabelecimento comercial da família e deixavam os filhos soltos pelos arredores da casa e as travessuras se sucediam, nem sempre com bons resultados.
O ambiente desse relato tem como moldura o interior de Santa Catarina onde a lei não chegava.
Jovens de 15 anos portavam armas, desordeiros e bêbados transitavam sem controle. 
 Corpos de homens mortos eram enterrados nos matagais ou jogados em riachos sem que ninguém os reclamassem.
Nesse ambiente hostil, Antônio  viveu sua infância e parte de sua adolescência tendo suas necessidades de sobrevivência cumpridas a bom termo,mas a alma permaneceu tristonha e pobre de sentimentos.
Estudou no seminário, onde a educação era gratuita.
Nessa época tomou gosto pela leitura e procurava a biblioteca, após terminar os temas de casa.
Passou a ler sobre os movimentos sociais e sua repercussão na política e sobre os grandes vultos da história universal.
Após completar o primeiro e o segundo grau, seu pai explicou que deveria completar seus estudos na capital.
Veio para Porto Alegre e cursou Ciências Jurídicas e Sociais, formando-se no curso de Direito.
Conseguiu emprego, além de uma colocação num escritório de advocacia, alugou um apartamento e trouxe seus dois irmãos para ajudar nos estudos, para que tivessem as mesmas chances que ele.
Antônio ganhava o dinheiro do mês mas não sabia aplicar devidamente. Jogava na loteria, emprestava sem saber a quem, e não raro, passava a fazer pequenos lanches, pois não guardava o suficiente para almoçar e jantar até receber seu próximo ordenado.
Talvez esse modo de proceder fosse um modo de compensar as próprias carências da infância. 
Antônio não sabia abraçar e beijar os próprios filhos porque não recebera esse carinho no lar. Tinha bom coração, trabalhava para dar-lhes estudo, mas pouco se aproximava deles.
Ao descobrir na lista do jornal local que sua filha fora aprovada no vestibular, cedo da manhã, correu em busca da empregada da casa e falou: 
- Maria, vá dar um abraço em minha filha que descobri seu nome na lista de aprovados do vestibular.
A empregada cumpriu o que lhe foi pedido e Antônio ficou observando a cena, de longe, com um sorriso nos lábios. Como se esse sorriso, às escondidas, pudesse substituir um beijo e um abraço, frente a frente.
Alem de ''mão aberta'' e contido em seus sentimentos, havia um terceiro problema, bem comum, ainda em nossos dias.
Antônio mantinha uma vida dupla e procurava outras mulheres.
Deixava bem claro que sua esposa era a mulher escolhida para ser a mãe de seus filhos, a quem amava e com  qual queria permanecer casado por toda a vida.
Justificava essas atitudes dizendo que precisava satisfazer suas fantasias sexuais mais ousadas com outras mulheres. Isso porque a sua mulher era sagrada e poderia ficar decepcionada ou magoada com algum atrevimento sexual. 
Como consequência, Antônio sustentava suas amantes, pagava seus estudos, fazia pequenas viagens, desde que seu ganho era suficiente para manter esse padrão, até que os excessos demonstrassem a derrocada financeira que, sem dúvida, se aproximava.
Quase aos 70 anos de idade percebeu que acumulara dívidas e que não havia adquirido nenhum patrimônio ao longo da vida.
Ingressou na política, indo atrás dos próprios sonhos mirabolantes, perdendo o pouco que tinha amealhado.
Mas a vida tem caminhos desconhecidos e imprevisíveis.
Em certa ocasião, Antônio conheceu uma senhora que possuía barcos e lanchas. Passou a visitar a marina e embarcações do local.
Jamais imaginara que a lancha, seu sonho maior, estava se delineando.
Essa senhora se tornou sua amiga e contratou seus préstimos como advogado porque precisava vender parte das lanchas que possuía para saldar dívidas feitas e já vencidas.
Antônio realizou os procedimentos necessários e conseguiu reverter o quadro de sua cliente que se livrou, finalmente,  das dívidas que a sufocavam e comprometiam junto ao mercado financeiro.
Como honorários, Antônio recebeu uma lancha dessa cliente que se colocou em seu caminho, quando mais precisava.
Antônio providenciou os documentos necessários para pilotar a lancha e se habilitou devidamente, concluindo um curso específico e prestando as provas.
Na primeira manhã de sol se embrenhou nas águas do Rio Guaíba e percorreu suas ilhas. Descortinou a fauna e a flora e voltou só ao final da tarde.
Mas enquanto a lancha seguia seu curso, Antônio esquecia de seus dissabores,de algumas dívidas contraídas e de suas restrições em relação à saúde.
Uma nuvem de felicidade invadia sua alma e a lancha empurrando as águas, carregava para bem longe tudo o que não fosse sinônimo de tranquilidade e beleza.
Foi então que me veio à memória a história de Cervantes, famoso escritor espanhol, com seus dois volumes encadernados, contendo um dos mais brilhantes textos da literatura universal. A obra se chama D.Quixote de La Mancha.
Então, apelidei Antônio de D.Quixote de La Lancha.
Pensei em quantas vezes Antônio passou a se retirar mais cedo do escritório de advocacia, onde atuava,para olhar para o Rio Guaíba, da janela de sua sala, onde descortinava a paisagem  que o chamava para buscar sua lancha.
Nessa época foi feliz e a todos convidava para um passeio de lancha.
Um dia, cheio de dívidas, pelo descontrole que sempre o identificou precisou vender a lancha e quase a própria alma.
Veio o tempo de se fechar no quarto, veio a aposentadoria e o sentimento de inutilidade. Veio a idade e o comprometimento em relação à saúde, veio o enfisema pulmonar, a artrose e a perda da energia para seguir vivendo. Veio  depressão e o tremor das mãos.
É como se, igual a D.Quixote de La Mancha, tivesse inúmeras batalhas com os moinhos de vento, os quais dizia serem gigantes a enfrentar.
Ou como se fosse impelido a se arremessar contra rebanhos de ovelhas, os quais jurava serem generais, com armas e escudos, montados em seus cavalos.
No episódio dos moinhos, Sancho Pança, fiel escudeiro, o ergueu do chão. No confronto com as ovelhas, D.Quixote foi impedido de dissipá-las, pelos pastores ,e ainda teve o escudeiro a lhe amparar.
Sua musa se chamava Dulcinéia, e foi fruto de mais uma fantasia. Mas amou Dulcinéia, um fantama que era depositária de seu amor platônico.
D,Quixote de La Lancha lutava consigo mesmo. Seus fantasmas eram de ordem econômica e moral. Sua consciência o acusava por perder o amor dos filhos e de sua mulher. Os seus irmãos começaram a se afastar e também os amigos pedintes que proliferavam no escritório, pois a fama de que Antônio emprestava dinheiro, corria solta.
Ambos os personagens criaram, cada um a seu modo, um mundo ilusório: um sonhava com Dulcineia e o outro com sus aventuras amorosas.
Ambos desnorteados, com ambições desmedidas, sem condições de pisar em terra firme.
A lancha deu a Antônio um falso sentimento de poder. Não percebeu que era uma estátua de barro ou um espelho de fina espessura e que sua razão estava se esfacelando, sem base sólida para se materializar.
Mas em meio a tantos desmandos, Antônio teve a preocupação de deixar uma apólice de seguro em nome dos filhos
Essa foi a única iniciativa que cumpriu sem dela se descuidar.
Talvez tivesse pensado em assim proceder para partir com a consciência tranquila e merecer um pouco de serenidade, onde quer que estivesse, em qualquer tempo e lugar.
Imagino que em seus últimos suspiros se pronunciasse, perante seus filhos, primeiro pedindo e depois afirmando:
- Rezem por mim e acreditem:
- Apesar de todos os meus defeitos, amei vocês, meus queridos filhos!

KATIA CHIAPPINI



5 comentários:

  1. Triste relato onde a vida em dissipação, faz o Destino cobrar a conta, mas parodiando o meu irmão mais velho que dizia: "Quem de nós, não é João?",quem de nós meus amigos um dia não teve sonhos quixotescos, ilusores de nós mesmos? Cabe aqui uma reflexão...

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  2. Verdade...texto muito reflexivo... obrigado por nos brindar com seus textos...

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