Aquarela de poesias

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Poesias para você

sexta-feira, 11 de julho de 2014

O INTERNATO

                 TEMPOS DE INTERNATO

Fui visitar, aos sete anos de idade, uma escola onde recebiam meninas de todo o interior de São Paulo, em regime de internato.
Entrei no carro com papai e mamãe e fomos até Mogi- Mirim.
Desci do carro e uma freira se apresentou e me convidou para visitar as dependências da escola.
Mas ao voltar não encontrei meus pais e fiquei correndo pelos corredores com a sensação de abandono a percorrer todo o meu pequeno ser.
Fui para baixo de uma mesa e chorei muito.
A voz da freira me dizia: 
-Se não parar com isso vou mandá-la para casa  dentro de um caixote, no caminhão de cargas.
Ao ouvir essas palavras fui me acalmando e parando de chorar para perguntar o que tinha acontecido com meus pais. Queria saber se havia um recado para mim.
Alguns dias depois conheci a irmã Maria, que a partir desse momento, se tornou uma grande amiga e confidente. Ela penteava meus longos cabelos e os prendia em duas tranças. E foi responsável por me convencer a provar o alimento que eu estava recusando.
A cada colher que eu comia, a irmã Maria ia contando uma linda história, enquanto me  convencia da importância do alimento.
Depois de transcorridos três meses recebi a visita de meus pais e passei o dia nos parques de diversões. 
Em minha inocência, aceitei suas explicações, mesmo que não as entendesse muito bem. A saudade era tanta que não havia espaço para brigas.
Na semana seguinte meus pais me mandaram um par de patins e uma bicicleta, com licença da direção.
As manhãs eram preenchidas com as orações matinais, café da manhã, arrumação da cama e cômoda, e com os estudos que iam até a hora do almoço.
No período da tarde eram feitos os temas de aula na sala de estudos.
Não se levantava do lugar sem pedir permissão.
Após o período dos temas escolares íamos para o pátio. Era possível jogar Vôlei, Ping Pong, Xadrez, Amarelinha. Ou, simplesmente conversar com as amigas.
Ao entardecer íamos para a bênção, depois seguida de missa e do terço, em voz alta.
Eu participava do coral da missa e ganhava vinho batido com gemada para ajeitar a voz. E, assim, a missa passava tão rápido que não chegava a me cansar.
Á noite, antes das 22 horas, íamos deitar com as luzes apagadas e não se podia conversar mais nada. As freiras se recolhiam na clausura, faziam suas últimas orações e iam dormir também.
No meio da noite uma menina sonâmbula se deitava ao meu lado.
Então, sem falar nada, eu ia para a cama dela e procurava dormir.
A disciplina era férrea. Não se tolerava desordem ao entrar e sair das aulas, nem conversas nos corredores. Havia fila para entrar e sair da sala e não se podia desrespeitar o alinhamento até chegar no pátio, na hora do recreio.
Cada interna tinha o número bordado nas roupas todas. Meu número era 63 e depois de uns anos passou para 163.
Era comum ser chamada pelo número.
Em certa ocasião rebati uma bola no jogo de Vôlei que me valeu o ponto decisivo para vencer um campeonato promovido em nossa escola. A partir desse dia conquistei o direito de ser chamada pelo meu nome. Na verdade, foi o que solicitei , na ocasião. Recebi uma medalha de ouro por ser considerada a melhor levantadora, o que valorizei bem menos do que recuperar minha própria identidade dentro da escola.
Noutra ocasião, duas colegas minhas foram expulsas da escola porque estavam fumando cigarro comum, no banheiro da escola.
E me senti assustada, quando uma menina me fitava, sem parar, na hora de dormir, e se chegava tentando me beijar na boca.
Tentei fugir desse assédio, mas um dia, inesperadamente, ela entrou na minha banheira, começou a me abraçar e não queria sair de lá. Chamei a freira da disciplina, imediatamente, e disfarcei dizendo: 
-Quer ver o que aconteceu na torneira da banheira de minha colega, já que ela veio até aqui porque faltou água?
Depois disso ela não insistiu e me deixou em paz. Só me olhava de longe sem se aproximar de mim. E nunca falei nada para nenhuma pessoa. Não iria prejudicar essa menina, pois, certamente seria desligada da escola.
Nessa escola, aos nove anos, passei a me dedicar ao estudo de piano. Havia um corredor com muitas salas e em cada uma delas um piano para estudos. Isso mudou minha vida e passei a gostar mais da escola. Quando terminasse os temas do dia podia ir para os meus estudos de música e minha professora se afeiçoou a mim.
Estudei os mestres eruditos em toda sua exuberância e amei descobrir esse novo mundo.
Nessa época,1950, a virgindade da mulher era prova de obediência aos pais e aos bons costumes vigentes.
Lembro-me de que uma das alunas mais adiantadas foi coagida a romper o noivado porque resolveu contar ao noivo, nas vésperas do casamento, que não era mais virgem. Falou que tivera relações íntimas com o namorado anterior.
Precisou deixar a escola por ser considerada um péssimo exemplo para as demais alunas. Anos depois desse fato, ficamos sabendo que o golpe foi tão grande que essa moça não quis mais se casar.
Mas nem tudo era perfeito quanto aos meus sentimentos.
Ficava, muitas vezes, perguntando a mim mesma, porque meu pai e minha mãe não me retiravam do internato, ou pelo menos, não falavam comigo sobre isso. Mesmo sabendo que meu pai era convocado para abrir novas agências do Banco do Brasil, o que lhe fazia mudar de domicílio.
Nem sempre eu quis participar das brincadeiras no recreio e ficava com um livro, sozinha, em banco separado, no pátio.
Percebi que não era capaz de abraçar, beijar com naturalidade minhas colegas, ou demonstrar meu afeto. Era como se tivesse uma barreira me impedindo de demonstrar meus sentimentos  de modo mais efusivo e natural.
Mas era capaz de emprestar algum material, ensinar as tarefas escolares, fazer um pequeno favor, como juntar um guardanapo ou buscar a sobremesa se me pedissem.
É que eu ia crescendo e sentia falta do convívio familiar, sentia falta de meu único irmão, de minha casa, de meus primos.
Passei pela adolescência, ainda interna e sentia um vazio na alma.
Sentia-me uma fonte sem água, uma planta sem sol. Lembrava de meus cachorros e gatos, num amplo pátio, meus companheiros. 
Lembrava das bonecas que não podia levar para a escola e com as quais pouco brinquei. Gostava de recortar roupinhas e vestir as bonecas de papel, o que cheguei a fazer, nas férias escolares, com minha babá incansável. 
Certa vez perguntei para mamãe: 
-Porque devo voltar sempre em regime de internato?
Minha mãe me respondeu:
-Minha filha, tu és de boa família, e como tal, precisas de uma educação esmerada para saber como se portar bem nos melhores ambientes. E no futuro farás um bom casamento.
Então, vi minha adolescência frustrada, sem possibilidades de conviver fora do internato. Precisei me privar das festas de aniversário, das saídas ao sítio com minha colega Carolina.
E não conseguia fazer confidências a minha mãe, muito séria e inacessível para certos assuntos.
Um dia, nas férias, estava em minha casa e vi mamãe pensativa.
Perguntei: 
-O que houve, minha mãe?
Ela respondeu:
-Quando retornei do hospital, após aquela breve cirurgia, não encontrei flores me esperando, minha filha.
Eu me defendi:
-Mamãe, eu não sabia que deveria esperá-la com flores. Ninguém me alertou sobre isso.
A minha mãe deixou a sala, imediatamente, calada.
Em outra oportunidade lembrei de que minha mãe me levou um café no quarto e a dispensei dizendo não querer interromper o estudo.
Mais tarde, olhei sua fisionomia, e percebi que a magoava.
Tratava-se de uma reação inconsciente, motivada talvez, por ter ficado durante tantos anos interna e com poucos momentos de convívio familiar.
Eu pensava que cada ano que ficava no internato poderia ser motivo de satisfação para meus pais, como se ratificassem seu poder econômico ou sua vontade de me ver socialmente educada e prendada.
Esses pensamentos permaneceram, por longos anos, mas eu tentava não culpar meus pais.
Mas chegaria o dia que deveria assumir minha vida, fora daquela escola de freiras.
Amadureci e tentei me preparar para esse momento.
Ao invés do toque do sino da capela deveria despertar com meu próprio despertador, sair de casa, não perder o horário do estudo, nem o do trabalho.
Teria que assumir minha vida, fazer compras, pagar contas, fazer render o salário. Teria que cobrar de mim mesma atitudes enérgicas e imediatas para enfrentar o mundo real.
Na escola da vida eu iria me sentir, no início, como uma alienígena dentro do meu próprio planeta.
Ia precisar me libertar das incertezas, da insegurança, das indecisões.
E sabia ,também, que quando voltasse a morar com meus pais, iria presenciar cenas que já podia prever.
Quando fosse ,efusiva, abraçar minha mãe, ouviria: 
-Minha filha, cuidado, não amasse meu vestido.
E se tentasse beijá-la, na volta de um passeio:
-Minha filha, qual a razão desses beijos se já nos vimos ontem?
E como eu responderia ?
Gostaria de não crescer, de me mostrar , as vezes, infantil, para dialogar mais tempo com meus pais e pedir-lhes um conselho.
Acostumada com laços frágeis de afetividade, temia que minha vida ruísse, como a construção sem bases sólidas.
Eu precisava de mais aproximação para ser realmente feliz.
Ao mesmo tempo, agora adulta, queria ainda perguntar se não avaliaram o vazio que me deixaram na alma naquele internato.
Talvez eu conseguisse meu intento.
Comecei a sonhar com beijos e abraços e sorrisos dos meus pais para comigo. Sentei na cadeira preguiçosa de meu quarto, cerrei os olhos e adormeci com a face serena.
No momento seguinte acordei e retomei meus pensamentos de angústia.
Isso porque não queria ouvir de meus pais, por ocasião de um diálogo franco, ao invés de uma pálida retratação, determinadas palavras que eu teimava em escutar.
Entretanto, minha mente teimava em fixar, com precisão, as falas que viriam de minha mãe, face às minhas indagações:
-Minha filha, fizemos isso para o seu bem
Eu diria:
Para o meu bem?
E antes que me contestassem, iria agir como personagem central no palco de minha vida. E, dirigindo-me, ao mesmo tempo, ao meu pai e a minha mãe, diria sem vacilar:
-Para o seu bem, meu pai.
-Para o seu bem, minha mãe.
Enquanto a solução final não me vinha à mente, pensei em deixar passar o tempo para encontrar as palavras mágicas para falar aos meus pais.
Mas, certo dia, relendo meu diário do internato, encontrei uma história curiosa de minha vida.
Assim estava escrito: 
''Pela manhã, a sineta tocava três vezes. O primeiro sinal indicava a hora da oração, o segundo era responsável pela arrumação do quarto, o terceiro era para escovar os dentes, fazer a higiene do rosto e se vestir.  E esse período, entre o primeiro e o terceiro sinal, era de 30 minutos.
E, assim, resolvi me levantar só no terceiro sinal e logo correr para o lavatório para a higiene pessoal. E apenas puxava a colcha para fingir ter arrumado a cama.
A freira descobria tudo e jogava minhas roupas no chão para me obrigar a ajeitar a bagunça. E, quando isso ocorria, eu perdia o recreio. Eu arrumava tudo sem reclamar e me deliciava com a própria travessura que deixava a freira furiosa.
Como isso ocorreu algumas vezes a freira, um dia, me indagou:
-Katia, você acha que vale à pena perder a hora do recreio com essa travessura?
Prontamente respondi:
-Algumas vezes me privei de ir ao recreio, mas valeu o tempo que ganhei para me espreguiçar e cochilar mais um pouquinho.
E antes que a freira me interrompesse, concluí:
-Apropriei-me, como se antes os fabricasse, de 30 preciosos minutos diários para me sentir livre como um bando de gaivotas a migrar do inverno para o verão. E pensar no esplendor do céu e nas pétalas de rosa se desfolhando com o vento.
Foram breves 30 minutos mas longos em significado. Neles coloquei sonhos e esperanças.
Vivenciei a paz e a liberdade na contemplação de meu ser real, como se em Alfa estivesse, como se para o Nirvana fosse, como se em Deus me abraçasse para pedir proteção.
Esses 30 minutos, aprisionei para impulsionar todas as outras horas de minha existência.
Transformei-os num poderoso balsamo para a alma, o que me permitiu ostentar um perfil, aparentemente, feliz.''

KATIA  CHIAPPINI
E-Mail:katia_fachinello42@hotmail.com

                              









Um comentário:

  1. Não culpo meus pais,mas tratei ,antes,de tirar proveito. Foi uma experiência que me fez crescer mais forte.

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