Aquarela de poesias

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Poesias para você

quinta-feira, 3 de abril de 2014

O SEU BICA DA FARMÁCIA : MEU AVÔ

          CLEMENTINO BICA DE ALMEIDA:
                         FARMACÊUTICO.

Eram amplos armários envernizados com portas de lâminas inteiriças de vidro, com prateleiras grossas contendo potes, frascos e caixas.
Na parede havia um grande relógio redondo, com números romanos no mostrador. Na parede oposta se destacava um enorme espelho oval, com moldura dourada.
Atrás dos armários estabelecia-se o laboratório constituído de vários balcões, armários altos, armazenando grandes potes de louça cheios de pomadas, vidros escuros com essências e sais para aviar receitas. E copos graduados, em diversos tamanhos, onde repousavam feixes de balcões de vidro. Também se fazia necessária a louça grossa e pesada, branca, baixa, com um bico para derramar o líquido, cada uma com uma mão de pilão em miniatura, também de louça.
Nela se mexiam pomadas ou misturas pós diluídos com líquidos estranhos, enchendo inúmeras gavetas e prateleiras. Completavam esse conjunto, as espátulas, papéis de filtro, caixas de cápsulas pequenas, caixas vazias de papelão estampado onde se colocavam as cápsulas prontas com o medicamento, contendo o nome do paciente, do médico, o rótulo da farmácia com a receita escrita e o modo de tomar.
Assim era a farmácia de meu avô.
Em minha meninice, o espaço físico da farmácia me fascinava e toda a manipulação feita no laboratório exalando cheiros envoltos em mistério e magia. Era interessante acompanhar todo o processo desde as misturas feitas até a colocação do rótulo que era colado.
A farmácia era uma ampla peça que fazia parte da residência da família. Ficava situada na cidade de Santana do Livramento, fazendo fronteira com o Uruguai.
Minhas férias de julho eram passadas naqueles balcões. Eu me divertia atendendo alguns clientes e meu avô entendia que para mim era um brinquedo e algo que eu não faria em minha cidade.
Meu avô jamais mandava embora um freguês sem atender. A porta ficava aberta durante o dia e encostada durante a noite.
Haviam fregueses das horas certas e outros de horas incertas, como aqueles, por exemplo, que perdiam o bico do nenê e só se davam conta na hora de fazê-lo dormir.
As refeições de vovô eram interrompidas a todo instante, pois, tanto nos dias úteis como aos domingos, fazia questão de atender a tempo e hora, sem reclamação alguma. Quando a manipulação e preparo da receita exigia um tempo maior, a comida voltava para o fogão de lenha para ser aquecida.
A farmácia fechava mas a rotina de vovô e seu coração, jamais. 
Vovô tinha um lema para si mesmo e o seguia ao pé da letra. Costumava dizer: 
 - A doença não escolhe a hora.
Mas , as vezes, o pedido feito, na madrugada, quando vovô atendia pela janela, era apenas,um simples Melhoral ou algo similar. Pois até uma dor de cabeça merecia sua atenção.
Na farmácia de vovô reuniam-se alguns amigos, após o expediente.
O tema poderia ser familiar, profissional ou em relação aos rumos que a política estava tomando.
Rui Ramos, na ocasião, frequentava essas rodas sociais na farmácia de vovô, assim como outros deputados em campanha eleitoral.
Coelho de Souza, considerado o melhor Secretário de Educação que o Rio Grande tivera até então, também conversava com meu avô entre uma cuia e outra de chimarrão que circulava nas reuniões.
Outros amigos de vovô eram fazendeiros, e nesse caso, a conversa girava em torno do preço da lã e da carne, dos pastos sofridos pela geada ou seca.
Fazendeiros de bota e bombacha largavam ali suas receitas  com listas de remédios. E passavam depois do trabalho para recolher os pedidos e, ao mesmo tempo, descansavam um pouco, antes de voltar para suas estâncias.
Meu avô atendia os mendigos e maltrapilhos que se sentavam na calçada e lhes dava os remédios dos quais necessitavam e, de quebra, um prato de comida que mandava preparar com alguma antecedência.
Lembro das noites de inverno e das pessoas que vovô recolhia, logo que fechava a farmácia, e que enchiam as escadas da casa, ao se sentar, para esperar cada qual, sua medicação.
Meu avô atendia sempre com a mesma disposição, pobres ou ricos.
Diziam: 
- Mas seu Bica, não tenho como pagar o senhor, hoje.
E meu avô, com a mesma atenção de sempre, respondia
- Vai, meu ''nego,''cure seu filho e depois você me paga.
Em eras passadas morria-se de tifo em Livramento.
Vovô mandava buscar as vacinas no quartel e ia vacinado, um a um, gratuitamente, todo o voluntário que se apresentasse. Começava pelo pessoal da casa, empregados, vizinhos, funcionários da farmácia e estendia a vacinação até que a última pessoas da fila fosse atendida.
Isso foi feito por vários anos até que surgiu o primeiro posto de saúde na cidade.
Vovô era brincalhão, risonho, cavalheiro, boníssimo e humanitário.
Despojado dos bens materiais e amigo de todos na cidade. Era incapaz de uma grosseria, tanto em família como na farmácia.
Cada um recebia o que hoje se convenciona chamar de atendimento personalizado.
As crianças o adoravam porque ele distribuía balas e goma de mascar para elas.
Vovô amou sua profissão mas amou mais os seres humanos.
Nem se pode dizer que fez de sua vida um sacerdócio porque sacerdócio foi sua própria maneira de agir enquanto viveu.
Ele demonstrou ter a verdadeira alegria de servir ao seu semelhante.
Quando se sentiu indisposto, saiu rapidamente da casa e foi para a farmácia. Entrou no laboratório, sentou numa cadeira e pediu uma coramina para um dos atendentes.
Mas morreu naquele momento, na farmácia, no seu laboratório, onde tantas vezes serviu aos outros manipulando as fórmulas  dos medicamentos.
Morreu sem sentir, em silêncio, sem queixas, como em vida. E no lugar onde passou mais da metade dela: no laboratório. 
E, multidão que o acompanhou em sua última caminhada, em direção ao cemitério, foi a maior já vista na cidade.
Lamúrias e choro alto se ouvia junto com os passos do cortejo fúnebre em direção à hora final.
Clementino Bica de Almeida, meu amado vovô, faço desse texto uma homenagem sincera e saudosa à sua bondade e a sua insuperável vida.
Sou sua neta mais velha, aquela que você gostava de apresentar assim:
- Essa é minha filha mais jovem que mora em Porto Alegre.
Sua bênção, meu querido vovô, parte insubstituível de minha infância feliz.
Você é meu exemplo de magnanimidade, de amor verdadeiro e universal.

                                    KATIA CHIAPPINI
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                                 E-MAIL: KATIA_FACHINELLO42@HOTMAIL.COM

Observação: texto inspirado num ensaio de minha tia: Thereza de Almeida ( filha de vovô Bica) datado de agosto de 1996.
E que presidiu a Academia de Letras Santanense. Escreveu e lançou dois livros e veio autografá-los na feira do livro da capital: Corpo e Alma e Lembranças de Menina, entre outros trabalhos para o jornal local: A Plateia, o de maior circulação na cidade.            

4 comentários:

  1. SEU BICA, UMA VERDADEIRA BICA ONDE SÓ JORROU O AMOR AO SEMELHANTE.

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  2. Uma bela homenagem, feita com amor e sensibilidade! Beijos.

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  3. Muito me orgulho de meu avô: obrigada,menina.

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  4. Katia me emocionei ao ler o texto sobre o vó. Muito verdadeiro!! Saudades de um grande homem .

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