Aquarela de poesias

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Poesias para você

sábado, 31 de maio de 2014

Minha vida na estância São Miguel do Sarandi!

      Minha querência querida: LIVRAMENTO
              ( lembrando de meu tio Léo )

Meu tio Léo era virginiano como eu.Tinha o hábito de carregar papéis no bolso, com anotações do dia a dia. E a medida que tudo ia se resolvendo descartava os papéis. Eu faço o mesmo em minha agenda e vou deixando nela só as folhas referentes às anotações do que ainda preciso fazer.
Meu tio tinha por hábito convidar a mim, meu irmão e os demais primos para passar as férias na estância.
Eu era uma menina de 9 anos de idade quando fui pela primeira vez.
Cheguei tarde da noite e fui direto para o meu quarto, descansar. Na manhã seguinte, minha tia me levou para a frente da casa, abriu a porta e nem acreditei no que estava se descortinando em minha frente. Olhei ao redor, vi toda a extensão do campo e disse: 
 -Que pátio grande!
Era deslumbrante a força da natureza e a beleza do local, onde não se sabia onde começava e onde terminava o campo.
Entre os primos, meu irmão e eu éramos os mais velhos. Tínhamos a incumbência de zelar pelo sono dos tios, após o almoço. E, por isso manter toda a gurizada longe da casa até as 15 horas.
Eu gostava de conversar com o tio Léo quando ele chegava do campo. Era meu parceiro no jogo de dama, moinho e xadrez. Mas, como não admitia perder uma partida, inventava regras novas, na hora, para ganhar sempre. E minha tia que observava tudo ficava rindo de nossos momentos de jogos, as vezes, mais conturbados.
Quando meu tio ia fazer a barba eu ficava por perto fazendo muitas perguntas sobre o que aprendera no colégio, na quinta série.
Ele as respondia de qualquer jeito e eu o criticava:
-Mas que ignorância, meu tio!
E ele ficava contente porque eu achava um jeito de ganhar dele nesse jogo de perguntas e respostas, quando eu desenrolava tudo o que tinha aprendido em História, Geografia e Ciências.
É que eu, pequena, não tendo o alcance para entender que ele não poderia saber o que estudara quando menino, como eu, só poderia errar algumas respostas. E titia ainda se lembra que eu perguntava a ela:
-Titia, meu tio sempre foi burrinho assim?
Tio Léo e eu também brincávamos de fabricar licores caseiros.
Ele colocava sobre a mesa uma parafernália de coisas para que fizéssemos as misturas. Ele me deu algumas explicações e logo pensei em fabricar um licor que tivesse melhor sabor do que o dele.
Usávamos cachaça Velho Barreiro, mel, canela, leite condensado e frutas diversas do pomar de meu tio: jabuticaba, pitanga, peras, uvas, butiá, maçãs, limão...
Depois de feito o licor ainda ficava guardado por uns 12 meses e só depois se abria, no inverno. 
Então, eu chamava todos para provar uma dose e queria saber se o meu tio tinha conseguido o melhor sabor, ou eu. Sempre queria superá-lo nas brincadeiras porque ele implicava comigo, me provocava dizendo que era o melhor. Mas o fato é que ele tinha conseguido uma ajudante interessada em deixar o licor saboroso.
Outra brincadeira que meu tio fazia comigo e com os primos era dizer que falava vários idiomas. E começava a desenrolar um palavreado dito com rapidez, bem enrolado, mas de efeito interessante. Lembro-me de quando dizia estar falando em árabe, ficávamos encantados com o brilhantismo de titio.
E custamos a descobrir que o tio inventava os termos, apenas tentando manter o sotaque do idioma. Ele dizia alguns termos certos e depois intercalava palavras que nada queriam dizer e seguia com muita propriedade, como se estivessem corretas. E nos encantava ver a sua versatilidade.
Uma das tarefas que tínhamos que cumprir era a de mexer os tachos de doces que titia fazia. Formava-se uma fila e cada um deveria mexer o doce por 15 minutos e ir para o final da fila, sem nem pensar em abandonar o posto. Mas meu tio costumava nos gratificar com uma importância em dinheiro que íamos juntando para fazer alguma compra na cidade.
Eu contava isso para papai, quando voltava das férias, e ele me dizia para não aceitar dinheiro do tio, pois esse já nos dava casa e comida.
Mas é claro que aceitávamos o dinheiro, como os outros primos.
Em época de exposição, eu e meus primos ajudávamos a pentear ovelha. Esse é um trabalho especializado e tem que conhecer bem. Só assim o pelo fica bem aberto, bem farto e muito bonito para a exposição. Era um trabalho de equipe, ao redor da ovelha e abrindo com os dedos, um a um, seu pelo. Depois, sim, se penteava a ovelha e dava gosto de ver como se transformava. E esse era um modo de ganhar mais uns merecidos trocados.
Ao final da tarde se fazia a hora do lazer, com os tocadores de violão e acordeon e declamadores, na frente da casa.
Nas estâncias não havia luz elétrica, mas titio tinha gerador próprio.
Por volta das 22 horas ele dava três toques de sino, com um pequeno intervalo entre eles. Ao terceiro já tínhamos que estar no quarto para deitar, com dentes escovados e a roupa de dormir. 
Meu tio era metódico como todo o virginiano.
Recebia o capataz da fazenda, pontualmente ás 10 horas, e dava as instruções para o dia no campo. E, ao final da tarde, tomava conhecimento dos problemas relativos à campereada.
Precisava saber da marcação, da vacinação, da tosa...
Titio recebia prêmios e troféus em exposições de gado e os colocava, na sala, sobre a lareira.
Anos depois, levei meus três filhos para conhecer a estância e, como eu, ficaram encantados em participar dos trabalhos todos.
Eles se perdiam o campo, à galope, entre campos, riachos e várzeas.
E, perto da hora de jantar, o capataz recolhia todos e voltavam juntos para a casa grande. E minha tia Bebê, muitas vezes, ficou preocupada com o horário, já avançado, sem que avistasse a volta da turminha.
Mas tudo era muito bem orquestrado e minhas vivências, até hoje, já madura, se reportam a esses dias abençoados, onde o calor humano era o Bem maior.
E os tios hospitaleiros, Léo e Bebê, sempre nos deram bons exemplos de vida em família.
Meu tio vinha fazer revisões médicas em Porto Alegre, minha cidade. Nessas ocasiões, minha mãe me avisava e eu sempre passava uma tarde com eles.
Quando titio estava mais debilitado, em certa ocasião, disse-lhe que iria vê-lo na casa de sua filha, onde estava hospedado.
Titia me contou que eu falei que chegaria lá pelas 16 horas e que titio colocou uma cadeira e se sentou pertinho da saída do elevador a me esperar. E ficou ali desde às 15 horas. Quando o abracei senti sua emoção e também marejei os olhos, como ele.
Fui visitá-lo uns três meses antes de sua morte repentina e conversamos muito. Aconteceu que levei um caderno com poemas e crônicas a respeito da estância e entreguei a ele para que lesse algumas matérias que eu havia sublinhado.
E quando minha tia o chamou para almoçar ele se recusou a ir antes de terminar a leitura. Isso porque pegou o caderno e não descansou enquanto não passou os olhos em tudo. E escreveu uma dedicatória emocionada para mim, ao final das folhas. E assinou com a letra trêmula, dificultando-me a leitura.
Mas se alguma palavra ficou sem compreensão, é o que menos importa.
Porque guardo na memória todas as outras palavras de nosso convívio na estância e toda a riqueza dessas horas. É como se tivesse pintado um quadro em minha mente. Um quadro de valor estimativo e único.
E até hoje, já vovó e com nova missão, tenho certeza de que na estância eu fui muito feliz.
É dessas horas que guardo com ternura que eu tiro a força para vencer meus desafios de mãe e avó.
Uma força vital e insubstituível que jamais sonhei e que me fortalece quando lembro do carinho que eu e meus filhos tivemos naqueles pagos queridos.
O meu patrão é o Dr. Léo Bochado e a minha prenda, a mais linda desse rincão, é minha tia Bebê: dona Clementina Brochado.

                                   KATIA CHIAPPINI
                        e-mail:katia_fachinello42@hotmail.com



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