Aquarela de poesias

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Poesias para você

sábado, 11 de janeiro de 2020

ESTÂNCIA SÃO MIGUEL DO SARANDI

                          ESTÂNCIA 
              DE MINHA INFÂNCIA: 
          SÃO MIGUEL DO SARANDI

Quando estive pela primeira vez na estância de meus tios, em Santana do Livramento, aos 7 anos de idade ,cheguei de noite e já estava bem escuro.
Minha tia me levou ao quarto de dormir, deu-me um beijo e disse:
- Amanhã vou passear contigo pelo campo.
Ao amanhecer tomamos café e titia me pegou pela mão e abriu a porta da casa.
Fiquei parada com os olhos bem abertos e olhei para fora virando a cabeça para a esquerda e para direita, sem palavras. 
Minha tia. curiosa, perguntou:
- Que tal?
Voltei a mim e respondi:
- Que pátio grande!
Para uma criança de cidade grande, onde sempre morei, aquela visão foi fantástica e sempre me acompanhou durante a vida toda.
O campo já se descortinava e parecia não ter fim. 
A pastagem bem verde, o lago na frente da casa, as garças mexendo as asas, os peões se movimentando e encilhando seus cavalos, os cachorros preparados para mais uma invernada, tudo parecia se cobrir de intensa magia.
Era um sonho bem colorido e não necessitava de retoques porque a natureza é plena e perfeita.
Depois do susto que levei, titia me levou para tomar café e todos os meus primos já estavam a postos.
Os horários das refeições eram observados. As cozinheiras deviam alimentar a casa grande e a casa dos peões.  O trabalho era árduo e constante.
Após o almoço, um pouco depois, já se via a mesa servida para o café da tarde.
Meu tio dava as ordens do dia para o capataz. Esse já tinha mais de 30 anos de casa e lá se estabeleceu com esposa e filhos, quando ainda jovem.
Minha tia já pedia que nossos cavalos de passeio ficassem presos para sairmos, em grupo, a passear pelos campos.
Só nos exigia que voltássemos na hora certa para almoçar em família. 
Observávamos alguns peões ao longo do caminho, cuidando nossa movimentação.
Uma vez só, eu caí do cavalo. Mas o cavalo parou e esperou que eu o montasse. Quando um peão quis me acudir eu já tinha voltado a montar para seguir adiante.
Esses eram cavalos bem mansos, escolhidos para nossa montaria, durante as férias.
Eu tinha escolhido o meu e dizia para minha tia que aquele tinha que ser bem cuidado para me esperar nas próximas férias.
Gostava de dizer aos meus pais que eu tinha um cavalo na estância, sempre esperando por mim.
Nos dias ensolarados íamos brincar no açude e usávamos como boia velhos pneus que ficavam na margem.
Nos finais de semana íamos acampar e meus primos faziam a fogueira noturna para espantar os bichos. E usávamos repelente na pele.
O almoço de domingo era preparado com requinte e as sobremesas eram, geralmente constituídas de compotas de pêssego, de figo, de pera e de outras frutas da ocasião. 
Ajudávamos a mexer os tachos de doce para agilizar o preparo das compotas e cada um de nós ficava a postos por quinze minutos e depois passava para o final da fila, até o doce ficar no ponto certo.
Lembro-me de que o feijão com carne de ovelha era muito saboroso e jamais, na cidade eu provara um igual.
A mesa era farta. E a morcilha, a canjica, o salsichão, a farofa e costela, o arroz bem soltinho, eram bem apreciados.
Meu tio adorava comer qualhada, ou coalhada, uma espécie de yougurte natural, feito em casa, quando o leite azeda. Ele me chamava para acompanhá-lo nesse momento.
Mas voltando aos doces em compota, quero dizer que minha tia, muito prendada e exímia dona de casa, precisava acordar antes das cinco horas da manhã para colher os figos escolhidos e preparar o doce num tacho gigante, até ficar no ponto certo.
Isso porque se demorasse muito para colher, corria o risco dos passarinhos estragarem o figo, com suas bicadas.
Além disso, titia empalhava cadeiras, costurava peças pesadas, pintava lindas paisagens, fazia o sabão, o requeijão e trabalhos manuais com perfeição.Era a versatilidade em pessoa.
A vida ao ar livre parecia favorecer  todos os frequentadores da estância. Nem lembro de ficarmos doentes, nem de ver os peões se queixarem de nada. Ao contrário, eram queimados do sol, fortes e musculosos.
Havia a hora do lazer, ao entardecer, quando minha tia e eu tocávamos a sanfona, na frente da casa.
Todos iam se aproximando e a peonada não ficava para traz. Via-se  toscos bancos ocupando o espaço e o chimarrão chegando para a roda.
As músicas eram do folclore: milongas, valsas, toadas dolentes que traziam lembranças sentimentais e sonhos do além.
Meu primo, Ricardo Brochado, declamava, magistralmente, os versos de Jayme Caetano Braun. Um dos melhores desse poeta campeiro é ''O bochincho,'' que considero uma obra prima. 
Havia a hora da confraternização, das visitas aos primos de outras querências. 
Havia o dia e hora do Mascate, figura quase folclórica que enlouquecia as prendas com seus lenços de seda, perfumes, roupas e sapatos. Todos embalados em velhas malas encorpadas.
Era de bom tom hospedar esse personagem itinerante que seguia seu caminho, logo ao acordar, não sem antes contar ''causos'' aos peões atentos. Aqueles casos que competem com as mentiras que contam nas rodas  de pescaria. Mas que trazem um sabor de mistérios, de fantasias fantasmagóricas, mas sempre apreciados.
Nessa paisagem de beleza sem par, de aconchego verdadeiro, de crianças felizes,de um campo verde e de cores deslumbrantes, a mudar conforme a hora do dia, passei longos anos de minha infância. Meu irmão e eu viajávamos de trem com uma amiga da família que era uma grande companheira de ''papos'' longos, de minha tia.
Até meu tio tinha ciúmes dessas longas confidências! 
Ela bebia um líquido que levava sempre e quando eu pedia para experimentar dava sempre uma desculpa. Isso porque dizia sentir muita sede, para dizer que era água e não seu licor preferido.
Na hora da sesta, um hábito de moradores do interior, meus tios pediam que eu distraísse  meus primos e inventasse alguma brincadeira, na área da garagem, afastada da casa.
Então eu brincava de teatro e cada um descobria seu talento. Uns cantando, outros dançando ou interpretando um texto, criado na hora, em grupo. Eu tocava violão e improvisava algum tema folclórico.E quem soubesse cantava junto, sem maiores critérios.
Muitas lembranças tenho  desse tempo iluminado.
E esse tio, o patrão, era muito brincalhão. Quando eu jogava xadrez com ele, inventava novas regras para ganhar o jogo. Quando eu ia roubar sua dama por exemplo, dizia que não se faz isso porque seria indelicado tirar a dama do jogo.
E meu tio,sabiamente, nunca tirou sua dama do jogo: munha tia Bebê, primeira e única companheira de alegrias e tristezas.
Meu tio foi dos primeiros estancieiros  a colocar canaletas no solo para armazenar água da chuva para preservar a vida do gado.
E quando não havia luz elétrica colocou Gerador na estância. Mas quando o relógio da sala marcava 22 horas, todos devim se recolher para dormir, porque a luz era desligada. Alguns se valiam das lanternas para ler até o sono chegar. Isso se deve aos fato de que a casa toda levantava cedo e cada um arrumava seu quarto antes de merecer o café da primeira refeição.
Um dos meus deleites era fabricar licores caseiros com meu tio.Ele colocava os ingredientes todos ao nosso alcance. Era só escolher, imaginar o sabor que queríamos imprimir e misturar tudo, amassas as frutinhas, coar tudo e colocar nos vasilhames.
Logo, chamava quem estivesse por perto para provar e escolher o melhor sabor.
Quando os meus licores eram os preferidos, algumas vezes, e titio ficava desconsertado.
Outra atividade que desenvolvi foi a de preparar a ovelha para meu tio levar para as exposições anuais. E muitos prêmios foram ganhos.
Mas meus primos e eu fazíamos esse trabalho juntos. Valia à pena ver o resultado: uma ovelha com o pelo lindo, bem aberto e bem penteado. E recebíamos uma mesada de meu tio por esse e  outros pequenos trabalhos feitos na estância.
Meu pai não queria que eu aceitasse dinheiro de meu tio. Mas impossível não aceitar porque merecíamos essa recompensa.
Esses anos estão num passado distante.
As lembranças voltam  sempre  e se tornam vivas e inesquecíveis.
Os personagens e vivências permanecem como um estímulo para desfrutarmos os bons momentos com intensidade.
Bons momentos não têm idade: são atemporais.
E, aos 10 anos de idade, escrevi e coloquei a música nuns versos que passei a apresentar, ao som do meu próprio toque ao violão, em ocasiões de encontro familiares.
Meus filhos cantavam comigo e uma parte da família decorou os versos.
Mais tarde cantei com a prima Beatriz Brochado, sempre muito alegre e querida por todos.
Finalizo deixando aqui a letra que fiz , na ocasião:

                          Estância São Miguel do Sarandi

Estamos nessa campanha, que nos acompanha cá longe, no sul
Saudando a natureza e a beleza desse céu azul
E as crianças trazem alegria e algum dia vão recordar
Que na estância passaram a infância, sempre ligeiras a galopar
E a filinha está gordinha, um bom petisco foi lambiscar
Pois na cidade, oh que maldade ela só tem tempo de trabalhar
E a Verinha, a sinhazinha, quer ocupar o seu coração
Alguém batendo, ela sai correndo, mas não é ele, é um peão
Só o Minuano é que não perdoa ,nos atordoa com seu uivar
A gauchada fica pestiada, mas assim mesmo, vive a cantar
The United States com seus enfeites quase roubaram nosso patrão
Mas a saudade trouxe a vontade de retornar ao seu rincão
As cozinheiras e as copeiras também merecem nossa gratidão
A Vicentina e a Jovelina são para nós de estimação
E o gauchão Dr Léo Brochado, por nós amado, é o patrão
Tia Bebê veio de encomenda, é a mais linda prenda desse rincão

KATIA CHIAPPINI


5 comentários:

  1. Lindo texto, assim como você, eu também tive uma infância muito rica, colorida e feliz no Parque de Diversões de propriedade dos meus pais, velhos tempos, tempos idos que não voltam mais. Um abraço carinhoso!

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  2. Que lindo esse texto que nos faz viajar no tempo com nossas lembranças de um tempo , guardadas as proporções , que emocionam.Texto muito bem escrito que daria para fazer um filme com todos os requintes necessários para um sucesso imediato com seus momentos nostálgicos, paisagens lindas, personagens...enfim tudo de bom... parabéns Esplendorosa escritora que nos emociona com seu texto com riqueza de detalhes...

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