Aquarela de poesias

Aquarela de poesias
Poesias para você

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O MÚSICO

      UM MÚSICO OU UM DESEJO DE SER...

 Um piano, cadeiras e mesa, ventilador e aparelhagem de som ocupam o espaço da sala de música, no quarto andar da Casa de cultura Mário Quintana.
Ministro aulas de música nesse espaço.
As aulas se destinam, preferencialmente, à terceira idade.
O objetivo da oficina de piano é despertar o amor pelos sons, descobrir novos talentos, propiciar a interação entre as idades e servir de terapia e de fisioterapia para problemas de artrose.
O trabalho é um desafio porque atende um aluno diferentemente de outro, de acordo com suas possibilidades, interesses e prática adquirida anteriormente.
Certa tarde, quando orientava uma das alunas, percebi, ao olhar pelo vidro da porta, que estávamos sendo observadas.
Um jovem aguardava o final da aula para falar comigo.
E ao abrir a porta para que a aluna saísse da sala, o jovem logo perguntou se eu poderia lhe dar atenção. Queria ser atendido na mesma tarde e se propôs a ter a primeira aula.
Falei que seria bom marcar outro dia, pois ficaria tarde e a aula já iria alcançar o anoitecer.
Mas o moço insistiu em esperar.
Já eram 19 horas quando entrou para sua aula.
Antes, contou que tocava violão e baixo e que pertencia a uma banda.
Percebi sua deficiência física, o que o levava a caminhar puxando a perna esquerda, sendo essa mais curta que a direita.
No decorrer da conversa estranhei o fato de ele ter dito que faria prova de piano na faculdade. Perguntei quais os estudos que tinha preparado e vi que não era verdade o que me falou.
Mas insistia em me pedir que o preparasse para a prova.
Em dado momento, pedi que me mostrasse sua habilidade ao piano.
Disse-lhe que eu trabalhava com módulos e que deveria se dirigir à secretaria para acertar o primeiro deles, constando de 10 horas, uma por semana, e individuais, preenchendo 2 meses e 15 dias.
Logo voltou ele com o recibo das 10 horas-aula.
Sentou-se ao piano e começou a tocar melodias clássicas de sua preferência, para meu deleite.
Começou a tocar, sem trégua, parecendo ter esquecido o objetivo da aula.
Era uma tarde chuvosa e fiquei ouvindo o som do piano, intercalando-se com as gotas que caiam do céu e que nos cumprimentavam ao bater na janela. E, embevecida, eu tecia elogios ao jovem a respeito de sua ''performance'.' Esse sorria e continuava a tocar com expressão e suavidade parecendo  habitar o mundo das nuvens, enquanto movia seu corpo franzino em ondas.
Carlos, era o seu nome, tocava com sensibilidade e impregnava de rara beleza os sons que preenchiam a sala. Esses me inebriavam.
O relógio sinalizou o final do tempo que  já ultrapassava o combinado : 45 minutos, hora-aula.
Em dado momento olhou-me e disse:
 -Toque, professora!
Então, dedilhei uma melodia de minha autoria e esperei o que ia falar. Ele disse:
-Bravo! se eu tivesse meu contrabaixo iria fazer um  acompanhamento.
E concluindo:
- Nada fica a desejar se comparada a outras composições de qualidade.
Logo depois, falou ser dono de um estúdio de gravação e se prontificou a gravar minhas composições num CD.
Agradeci a oferta e argumentei que ainda não havia registrado as peças de minha autoria.
Ele sorriu e disse que eu deveria aproveitar, pois nem ia me cobrar. E saiu com essa:
 - Músico que se preza não cobra de outro músico.
Continuou falando que fazia músicas para trilha sonora, para propagandas comerciais e eleitorais.
Deixei que falasse um pouco mais e, entre um e outro assunto, perguntei qual seria o horário que viria, na próxima semana. E solicitei que comprasse o material adequado. O jovem marcou sua aula e disse que me presentearia com um CD, contendo composições que fazia, nas horas livres.
Tratei de guardar meu material e vi que já tinham transcorridos 90 minutos.
Carlos me dissera que sua mãe o trouxera de carro e que após cumprir alguns compromissos, voltariam juntos para a cidade de Novo Hamburgo, grande Porto Alegre.
Numa tarde chuvosa achei que seria difícil o jovem voltar de lotação, pois poderia tropeçar, já que usava a bengala para se firmar Iria se deparar com as calçadas cheias de poças de água.
Fui para casa com a nítida impressão de ter conhecido um jovem especial, puro e sonhador.
Qual não foi minha surpresa, uma semana depois, quando na quarta-feira, esperei Carlos no horário das 19 horas e ele não compareceu.  E o dinheiro pago na secretaria?
Esperei por Carlos nas semanas que se seguiram mas esse não se pronunciou, não telefonou e desapareceu.
E, para minha tristeza o perdi de vista. Procurei sua ficha de inscrição e só havia um nome sem sobrenome, sem nada mais, totalmente incompleta. Perguntei para a secretária ´porque a ficha estava sem os dados de Carlos. Ela me explicou que o jovem estava tão ansioso pela aula que se recusou a preenchê-la, dizendo que o faria na próxima aula.
Certamente a mãe de Carlos, tendo em vista a deficiência do filho, ficou temerosa em relação à segurança dele. E como não tivesse a intenção de levá-lo e não tivesse sido consultada, convenceu-o a desistir das aulas porque morava em outra cidade.  E ele, depender de condução, seria impossível.
Mas Carlos teve seu momento de glória.
Encontrou em mim toda a platéia da qual precisava naquela tarde chuvosa. Alguém se emocionou com sua arte, deu-lhe atenção e o elogiou.
As conversas sobre prestar exame de música, ser dono de estúdio, gravar minhas melodias e compor trilha sonora, tudo me pareceu uma criação de sua mente, mera ilusão.
Carlos só queria se sentir amado, despertar um olhar para si e um pouco de carinho. Além,é claro de mostrar seu talento.
Sua dependência era física mas a compensara manifestando sua liberdade de expressão através da arte.
Era como se gritasse ao mundo:
- Não sou um deficiente de alma.
Era um bom instrumentista e tudo levou a crer que pudesse dedilhar uma guitarra e um violão.
E, se tivesse mesmo uma banda, não poderia sair frequentes vezes, para estar numa conversa de bar ,ou numa balada. E a banda não seria o lugar adequado para mostrar suas composições. E ele se sentia apenas mais um músico da banda do que alguém que reunisse ao seu redor a amizade do grupo: sentia-se isolado. Percebi e analisei a atitude de Carlos que pouco se importou de perder dinheiro, já que as aulas pertenciam a um pacote que gerava um compromisso. Ele sabia que faria só uma aula, pois era o que queria no momento: um apoio, uma palavra de carinho,um elogio.
Ele calculou o tempo certo que sua mãe precisaria para resolver assuntos dela e aproveitou, em seu proveito, o momento da ausência da mãe. Queria transbordar, transmitir a harmonia perfeita que se iniciou na sala do piano e propagou-se por outros aposentos, corredores e pátios da Casa de Cultura. 
A música alcançou um pequeno jardim interno onde um só passarinho parecia fazer dueto com o som do piano, enquanto saltitava, como a alma de Carlos.
Observou o brilho nos meus olhos e amou o fato de merecer minha aprovação como se fora uma criança pequena, mostrando um novo desenho, feito para provocar um elogio, um abraço ou um beijo.
Acreditou em sua capacidade de executar, fielmente, lindas melodias e percebeu minha atenção e encantamento, como tantas vezes, desejou merecer.
E se impregnou de um brilho semelhante ao das estrelas ou ao de um farol. Quis refletir sua luz como a de um pirilampo que clareia as verdes matas.
Pois como o camelo que armazena água suficiente para atravessar o deserto, Carlos havia armazenado,no reservatório da alma,uma alegria incontida, duradoura, quase eterna, tal a intensidade de seus sentimentos.
 Havia aprisionado também a luz da esperança.
E não poucas vezes, fiquei recordando em minhas noites, aquela tarde de quarta -feira. A felicidade de Carlos atravessou todas as fronteiras e ampliou seu pequeno mundo.
E estou convencida de que  eu experimentei uma felicidade igual a de Carlos, chegando em casa sob forte emoção.
E, ainda nesse clima, nessa quarta feira, fui ao piano e executei minhas melodias preferidas para que pudesse prolongar  tanta magia!
Lembrei de Carlos a cada acorde, andamento, ritmo, interpretação, acordes,variações e improvisos que preencheram o espaço de minha sala.
E Carlos, se fizesse o mesmo ,ao chegar em casa, certamente. deitaria a cabeça sobre as teclas do piano. Porque tocaria até o corpo pedir um descanso. E talvez, adormecesse sobre o teclado, imaginando estar abraçando o instrumento. E acordaria agarrado ao móvel  aconchegando-o ao seu corpo franzino.
E teria a impressão de que o piano seria seu defensor e amigo.
Provavelmente acordaria, com o mesmo sorriso que tinha ao adormecer, aprisionando na memória lindos sonhos.
Como os anjos, estaria em paz, como se flutuasse, como se acolhesse a vida em nova dimensão, em toda sua plenitude.
E será que tocava contrabaixo ou tinha uma banda?
Restam dúvidas a esse respeito como permanecem outras lacunas nas afirmações de Carlos.
Mas quem somos nós, simples mortais, para definir os limites entre o  sonhos e a realidade. E.principalmente, quando aqueles se torna mais e intenso do que essa?

                                         KATIA CHIAPPINI




AULAS DE PIANO: FOLDER NA CASA DE CULTURA DE PORTO ALEGRE.
PROFESSORA: KATIA CHIAPPINI, CARTEIRA DA ORDEM DOS MÚSICOS:
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