Aquarela de poesias

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Poesias para você

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

A CASA DA ESTÂNCIA

                   A CASA DA ESTÂNCIA

Quando criança e adolescente, minhas férias foram bem aproveitadas porque transcorreram na estância São Miguel do Sarandi, em Santana do Livramento.
Éramos uma turma de primos e demais pessoas que circulavam atarefadas cumprindo suas respectivas obrigações.
Os campos eram extensos e bem cuidados e a organização dos mesmos era mantida com esmero.
Os tios Léo e Bebê eram os patrões e comandavam com disciplina todos os setores da lida diária.
As cozinheiras e as copeiras moravam na estância com suas famílias.
O capataz ganhara um terreno e algumas cabeças de gado, como estímulo pela dedicação de muitos anos.
Todas as manhãs meu tio reunia os tropeiros e dava as coordenadas a serem seguidas para que a ordem fosse mantida e os animais bem cuidados em suas necessidades.
Alguns deles eram preparados para desfilar em exposições, na capital e no Uruguai. E os prêmios e taças obtidos desfilavam no móvel da sala, junto à lareira.
A estância recebia a visita do veterinário, dos mascates, dos negociantes, dos arrendatários, do contador, do fornecedor das mercadorias solicitadas.
Ao entardecer o acordeon anunciava a hora de lazer e os bancos rústicos circulavam a casa grande para ouvir Teixeirinha, Agildo de Freitas, Os Serranos. Os irmãos Bertussi e o Conjunto Farroupilha, entre outros.
O mate amargo e os ''causos'' de galpão enriqueciam essas horas tranquilas e de merecido descanso.
Até o filho do patrão se animava a declamar ''O bochincho',ou''Galo de Rinha''' de Jayme Caetano Braun, um dos melhores pajadores dos pagos.
Durante a tarde a gurizada encomendava seus cavalos encilhados para passear pelos campos a perder de vista.
Um dos homens ficava circulando pelos campos e observava o andar dos cavalos e a algazarra da meninada faceira.
As refeições de domingo eram especiais e as iguarias multiplicadas.
A sobremesa era servida em forma de compotas de figo,de pêssego e geleias de frutas. As cucas, bolachas caseiras, pudins e tortas eram a alegria da criançada.
Minha filha Tati, levantava a toalha que cobria um tacho de figo em calda e ''roubava alguns', quando passava pela sala de jantar, ao longo do dia.  
Minha tia nos convocava para rechear as tripas de linguiça que pendurávamos no varal para secar.
Fazíamos rodízio para mexer o tacho de sabão, pentear as ovelhas  para a exposição, colher os figos no quintal, laranjas, bergamotas.
A pitanga e o butiá e jabuticaba eram reservadas para a fabricação de licores caseiros.Tarefa essa, que meu tio e eu gostávamos de fazer e até de apostar quem conseguiria apresentar o melhor sabor no cálice.
Minha tia sempre se mostrou uma dama habilidosa e de mil e uma utilidades. Ela costurava roupas pesadas como jaquetas e calças. Essas últimas eram enfeitadas com ''favo de mel'',nas laterais, modelo típico usado por todo o gaúcho que se orgulha de sê-lo.
Ao som de uma viola as canções cortavam a paisagem e o Sol dava lugar para a sua irmã Lua, que cumpria seu papel de sentinela do firmamento, onde as estrelas eram as companheiras reluzentes. 
O clima era restaurador de energias perdidas na cidade grande e o descanso era emoldurado por uma paisagem deslumbrante, onde o   som dos pirilampos e pássaros eram ouvidos com surpresa. E o coaxar das rãs se ouvia perto da casa e, à noite, sua presença habitava os banheiros. E tínhamos ordens de não espantá-las porque eram bem-vindas pelos donos da casa.
Para que meus tios pudessem dormir um pouco, após o almoço, hábito que congregava todos os presentes na estância, minha tia solicitava que eu reunisse todas as crianças na garagem para brincar de criar alguma cenas de teatro, para contar histórias, brincar de amarelinha. E não deveriam sair  da garagem até os tios e o pessoal do galpão acordarem para seguir seu dia de tarefas.
Eu coloquei um quadro negro e giz para que as brincadeiras de forca, desenhos e palavras cruzadas pudessem ser feitos.
Os dias transcorriam em paz e as crianças aproveitavam para criar brincadeiras e trazer novas ideias para o bom aproveitamento do tempo de férias.
A estância São Miguel do Sarandi é uma dessas lembranças que não se apagam ,jamais, da memória de uma criança.
Voltávamos a cada novo ano e ainda voltei depois de ter meus três filhos. Eles aprenderam a cavalgar  e seguiam a peonada para ver como funcionavam os potreiros, a tosa, a marcação do gado, a aplicação de vacinas, os cuidados com o gado adoentado ou com a vaca que carregava seus bezerro na barriga. Se fosse filha seria novilha. O pai era o touro porque o boi era castrado.
Agradeço, todos os dias, pela oportunidade que me foi dada de passar as férias nessa estância de tantas lembranças e infinitas.
Minha tia Bebê já ultrapassou seus gloriosos 90 anos de idade.
E creio que um dos segredos de sua vida alongada seja o fato de ter se mantido ativa, ora nos afazeres da casa, ora nas telas que pintava, ora na reforma das cadeiras de palha, ora na fabricação de requeijão caseiro.
A saudade da estância é uma das maiores e mais significativas que trago comigo, ao longo da vida. Hoje conto aos meus netos essas histórias, e são muitas,as que tenho na memória.
E desse tempo trago comigo a força que jamais sonhei.

                                       KATIA CHIAPPINI


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